terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A linha tênue entre o fatalismo de ocasião e o negacionsimo


Em meio a discursos aparentemente antagônicos, é possível enxergarmos convergências de finalidade quando o assunto é burlar medidas de distanciamento e prevenção ao coronavírus. Meio esquisito começar um texto nestes termos, mas você vai entender.

Existe uma linha divisória imaginária entre negacionistas e fatalistas de ocasião. Uma linha tênue, como você pode já pode imaginar. Mas antes, vamos a alguns esclarecimentos: fatalistas de ocasião são aqueles que aderem a movimentos a favor de vítimas de determinado acontecimento ou de causas humanitárias (sejam acontecimentos de violências, acidentes ou doenças), mas que têm comportamentos contrários àquilo que pregam. Exemplos atuais para clarear: o jogador Neymar (que já gravou vídeo aplaudindo profissionais de saúde) e agora estaria organizando uma suposta festa de réveillon para 300 pessoas, ou o influenciador Felipe Neto, que tanto pregou o distanciamento social e as medidas de prevenção à covid-19, porém foi filmado em um jogo de futebol com amigos, além de outras "celebridades" que tiveram comportamentos semelhantes. Ou seja, há uma aparente aderência à dor alheia, a orientações de autoridades sanitárias, reconhecimento de profissionais da área de saúde, etc, porém também há, estranhamente, comportamentos na vida prática que são contrários a tudo isso que é reverberado. Comportamentos que vão contra tais orientações, recomendações, medidas de segurança, o que não faria sentido vindo de quem prega exatamente que isto não seja feito. Sim, você pensou em "faça o que eu diga, não faça o que eu faço".

Então seria possível traçar um paralelo entre o negacionismo científico e o fatalismo de ocasião? Tentaremos (a grosso modo).

O ponto de convergência entre ambos seria a finalidade. O fatalista de ocasião não nega o conhecimento científico, nem mesmo o refuta, pelo contrário, o divulga, endossa, dá o seu devido crédito. O negacionista, contrariamente, elenca teorias conspiratórias para colocar em xeque aquilo que tem comprovação fática, científica. Ele se apoia em tais teorias para descumprir recomendações sanitárias, administração de determinados fármacos ou mesmo tomar imunizantes para determinada doença, para contestar a ciência e agir por suas próprias medidas, geralmente baseadas em achismos. Ou seja, o negacionista assume que não reconhece o conhecimento científico como conhecimento de fato (meio macabro dizer isso em pleno 2020, mas está acontecendo). Já o fatalista de ocasião tem o comportamento oposto: endossa a ciência, prega seus conhecimentos, porém por vezes (sem generalizar), burla tais regras que tanto brada a todos e faz o contrário daquilo que seria sua convicção, em tese.

Ou seja, na prática, temos dois comportamentos idênticos que se dão por meios distintos. Um renega o conhecimento e, portanto, se comporta de forma contrária a toda recomendação científica de prevenção a um vírus, por exemplo. O outro refuta o negacionista e estimula os comportamentos recomendados pela ciência, porém, quando é conveniente, trai aquilo que toma por princípio em certa ocasião, para benefício próprio.
Nenhum dos dois é exemplo, e tais comportamentos maculam ainda mais as tentativas da ciência de salvar vidas, pois no final é isso que se busca.

O fatalista de ocasião prejudica ainda mais quem o toma como referência, quando se comporta de maneira contrária àquilo que tanto pede para que outros façam, "criminalizando" tanto quem faz o oposto daquilo que pede o conhecimento científico e assim, massificando ainda mais uma descrença sociopolítica em seus seguidores, admiradores. Afinal, "o exemplo deve vir de cima". Pouco adianta criticar figuras políticas e ter um comportamento semelhante a elas. Oposição se faz também, e principalmente, quando não há ninguém te olhando. Se for só para ser discurso, não é oposição, é autopromoção.

Sabemos que, infelizmente, muitos se aproveitam de eventos como essa pandemia para se projetar, seja culturalmente, politicamente, etc. Seja com um discurso negacionista, contra a ciência (que seria um discurso contra o "estabilishment" e um suposto controle que ele quer exercer sobre todos para implantar algo que nem mesmo os negacionistas sabem explicar direito o que é) ou um discurso pró-ciência, se colocando como norte para aqueles que desejam se informar e se opor aos negacionistas, derrubar as falácias em cima da ciência e orientar a população ao recomendado pelos especialistas.

Ou seja, um evento devastador como esse que estamos vivendo, também é palco para quem deseja entrar no picadeiro político-social e assim se projetar de alguma forma. O oportunismo que ignora vidas perdidas e se dá no discurso bonito, em lives nas redes sociais com pompa intelectualizada e análises muitas vezes rasas (mas que agradam os ouvidos de muitos), se mostra na prática e assim reflete não só a nossa sociedade bem como reforça o estereótipo de que o brasileiro é "desse jeito e não irá mudar", que não adianta votar, impor restrições, fazer leis, desenvolver estudos, ter regras de maneira geral. E talvez esteja correto, até certo ponto. Talvez haja no brasileiro uma certa letargia fática, onde o conformismo com certas questões tomou conta e normalizamos o anormal, o absurdo. Interessa mais tomar conta dos comportamentos cotidianos daqueles que estão em voga para fazer um julgamento moral do que se debruçar e compreender questões um pouco mais complexas.

É péssimo ver fatalistas de ocasião fazendo exatamente o contrário do que pregaram para seu público. Pior ainda é ver negacionistas pegando tais comportamento e apontando-os como exemplos de hipocrisia, reforçando seu próprio discurso e enfraquecendo ainda mais o conhecimento científico. Transformando tais exceções (porque sim, esses comportamentos são exceções) em regra, como se aqueles que aderissem às recomendações científicas, na realidade, fossem iguais aos negacionistas.


quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Precatórios, Guedes e um programa de renda

É curioso observar o esforço de governos para se manterem no poder. A partir da posição que ocupam, mudam vidas, rumos, negócios, enfim, interferem em tantos e tantos pontos básicos e não básicos da vida em sociedade. Hoje o desprazer foi o Ministro da Economia dizer que "há uma indústria de precatórios no Brasil". Eu não me contive (de início pareceu-me uma piada, de verdade), portanto vim "falar" sobre o tema e elucidar questões mínimas.

Por que não temos uma indústria de precatórios no Brasil? Aliás, o que são precatórios? Os precatórios estão previstos no artigo 100 da Constituição Federal. A grosso modo, são como uma fila de espera para que as pessoas que não receberam valores que o Estado deveria pagar, e por isso acionaram a justiça, tenham a garantia de receber. Veja bem, garantia de receber, não o valor em mãos. "Há uma indústria de precatórios no Brasil" soar como piada, se dá pelo fato de imaginar que o próprio Estado estaria dando calote e não efetuando seus pagamentos com a finalidade de fomentar um movimento de ações no Poder Judiciário (gerando mais custo para o próprio Estado) a fim de que os autores das referidas ações ganhem e recebam os créditos... Que são devidos e pagos pelo Estado! Ou seja, direitos que o próprio Estado não pagou, por quaisquer motivos.

Porém o motivo para tais devaneios é claro, lógico e se expressa na prática da vida política, que não vem de hoje.
O governo Bolsonaro não tem lá fortes alicerces políticos. Não à toa, rifou cargos para o chamado centrão, chegando a criar ministérios, acenando positivamente para aqueles que sempre disse repudiar. A necessidade de se manter no poder falou mais alto e agora não é diferente. Por mais que as últimas pesquisas sinalizem 40% de aprovação deste governo, isso é passageiro e o governo sabe disso. Assim que o auxílio acabar, a realidade vai bater à porta dos brasileiros novamente. O mercado não estará recuperado a ponto de ter uma empregabilidade suficiente para que a maior parte da população se mantenha com o mínimo de dignidade (ou seja, não haverá empregos) e pronto, a insatisfação com o governo vai decolar. Sabendo disso, e também baseado em experiências de governos passados, Bolsonaro agora quer tentar o caminho "mais fácil": um programa social que coloque dinheiro na mão dos mais pobres, que são o maior número de votos do país. Deu certo com governos passados, por que não daria com ele?

A fórmula parece simples, porém não é. Ainda há uma pandemia, a economia está em frangalhos e as perspectivas são todas de piora e exatamente por tais fatores que não há de onde tirar numerário para um programa de renda. Sim, não há dinheiro para isto. A tática era tentar tirar dos precatórios, dificultando pagamento de dívidas do Estado e do FUNDEB. Ambas propostas vistas com muita rejeição pelo Legislativo Federal. E novamente, tudo pela política, para se manter no poder, nada além. Não há projeto econômico por trás do tal programa, não há motivo nem mesmo lógica para criar algo que irá onerar mais ainda o Estado. Há, somente, sede de permanecer no poder.

O Brasil não vai bem, ele só tenta disfarçar. O nível de desemprego subiu, a administração da pandemia foi desastrosa (somo uns dos países com o maior número de mortos), a (falta de) política ambiental já prejudica negócios internos e externos, temos uma marca histórica de fuga de capital do país e se eu fosse citar mais problemas, dariam algumas postagens. A última jogada é a medida mais "populista" possível: "dar" dinheiro ao povo com a marca deste governo. O Bolsa Família soa petista, não há lucro político para esse governo com tal programa. A necessidade deles é um programa que, de alguma forma, expresse alguma identidade deste governo.
Não temos nem 2 anos de da atual administração, e o governo já está tomando medidas um tanto "desesperadas" para inflar uma popularidade que pouco tem e tentar uma reeleição em 2022. Desidratar a Lava-Jato também é uma tática, mas esse é outro assunto.

Fato é que, caso haja viabilidade do tal programa de renda, este pode ser a estabilização política desse governo ou o início do seu fim. Não há sustentação com a realidade para tantos desmontes e políticas prejudiciais em tantas áreas no país, somente para agradar certos grupos. O programa de renda é um tiro no escuro. Não garante uma reeleição, mas também não tira a possibilidade. Enquanto isso, seguimos ouvindo e lendo tais absurdos, de que as queimadas são ações de terceiros e que o governo estaria tomando ações eficazes, que há indústria de precatórios, perseguição a parlamentares, governantes e outras pessoas por discordarem do governo, etc. Fiquem atentos, tudo isso será cobrado no futuro.
Um governo inconsequente esquece que o amanhã sempre vem e que a realidade se impõe. Sempre.


 

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Os Degraus de Bolsonaro


 Muitos afirmam que a eleição de Bolsonaro para a Presidência foi o maior “estelionato eleitoral” do país. Afirmação feita no sentido de ele ter prometido fazer algo diferente do governante comum, mas ter atitudes similares, voltadas para si e seu projeto de poder no serviço público, ocupando cargos eletivos (agora, na Presidência da Republica).

Nada que seja surpresa, visto que em seus discursos durante sua vida política e até mesmo em sua conduta como militar, ele já deixava clara sua intenção de conseguir uma ascensão econômica através do trabalho que estivesse exercendo, seja no Exército, como parlamentar, etc.

E uma tática mais que perceptível nesse processo de ascensão, é o uso de “degraus políticos” que o Presidente fez e permanece fazendo, onde somente ele sobe, porém, reflexamente, acaba criando e expondo possíveis adversários.

Um dos primeiros degraus dessa jornada talvez tenha sido Gustavo Bebianno. Coordenador da campanha eleitoral de Bolsonaro de 2018 e posteriormente Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Bebianno teve uma demissão um tanto confusa e considerada até mesmo covarde, tendo sido o estopim da denúncia do empresário Paulo Marinho contra o senador Flávio Bolsonaro, conforme ele mesmo afirmou. Bolsonaro teria conseguido grande êxito na campanha devido à atuação de Bebianno, e depois de ter chegado ao poder o dispensou, como aquilo que ele mesmo considera suas bases eleitorais: algo de mero uso para alcançar o que quer.

São perceptíveis alguns outros degraus, tanto antes como depois de ser eleito. O discurso antipetista e pró lava-jato foram alguns. Do antipetismo o presidente ainda não se desfez, talvez por ainda não ter precisado. O lavajatismo ele vai desidratando aos poucos. Mas com um interesse específico: enfraquecer uma possível candidatura de Sérgio Moro à Presidência em 2022. Moro pode sim ser um forte adversário, apto a abalar uma reeleição de Bolsonaro. Enfraquecer a Lava-Jato e apontar suas falhas, ressaltando-a como uma operação negativa e não benéfica contra a corrupção, faz parte do jogo eleitoral dele.

Aliás, Sérgio Moro também foi mais um degrau usado na caminhada de Bolsonaro. Talvez o principal. Foi quem colocou seu principal adversário político na cadeia, entoava um discurso anticorrupção e era tido como uma espécie de super ministro. Bolsonaro o usou, até a hora que Moro começou a esbarrar em possíveis ilicitudes da família do Presidente e uma estranha obsessão pelo controle da Polícia Federal do RJ.

Dessa forma, Bolsonaro não apenas deu mais notoriedade a Moro, como também formou um antagonismo perigoso para ele próprio. Moro agora é uma ameaça a seu projeto de poder. Talvez o degrau que tenha custado mais caro a Bolsonaro e que ainda possa cobrar seu maior preço numa futura eleição.

Muito provavelmente o próximo degrau que está com seus dias contados é Paulo Guedes. As atuais divergências do Ministro da Economia com o Presidente são notórias. Guedes já está raspando o fundo da panela, pois sabe que em breve pulará do barco (ou será jogado fora dele). E assim, pode ser mais um possível antagonista de Bolsonaro e também candidato, não à presidência, pela falta de força política, mas se aliando a algum possível candidato (o próprio Sérgio Moro) ou a um governo estadual, etc.

Dessa forma, Bolsonaro segue fazendo uso de movimentos, bandeiras, pessoas, ideias para conseguir se manter. Não lhe importa muito em que acreditar, mas sim o capital político que possa render a ele. O que é perigoso para seu projeto, visto que muitos que saíram de seu governo ganharam força política por antagonizar com o Presidente, tendo ideias de maior receptividade pela sociedade e demonstrando mais empatia e identificação com boa parte do eleitorado. Imaginem uma Chapa de Moro com Mandetta e um Paulo Guedes como possível Ministro. Bolsonaro resistiria?

Talvez seu último reduto, não de degraus, mas de tentativa de estabilidade política, seja o centrão.

O Governo se tornou uma figura dúbia. Muitos não querem vincular sua imagem a ele, porém outros ficam tentados pelo poder, remuneração e notoriedade que poderão ter por fazerem parte dele.

Bolsonaro pensa no agora. No que precisa fazer para se manter. Mas não percebe que, antagonizando com tantos, cria novas possibilidades que ameaçam seu próprio projeto. O tal “bolsonarismo” não dura muito, pois é um movimento auto-destrutivo. Ao mesmo tempo que antagoniza com adversários e até com aliados, dá espaço para que eles ganhem holofotes e se projetem politicamente.


quarta-feira, 10 de junho de 2020

Estamos carentes

Depois de 35 anos de redemocratização, tem-se a impressão de uma latente fragilidade da nossa democracia. Todos os artigos, incisos e alíneas escritos naquele livro promulgado em 05 de outubro de 1988, que buscavam construir uma sociedade “livre, justa e solidária”, parece novamente ser abalada por figuras semelhantes às de 1964.

Entretanto não podemos deixar de reparar em aspectos alimentados por nossa sociedade para que chegássemos a esse ponto. Afinal, a política não se faz sozinha, é necessário todo o movimento social, em termos de cultura, valores e anseios para que se possa definir quem tomará a frente do país. Os rumos políticos, ao contrário do que muitos pensam, não se definem (somente) nas urnas, mas no jantar depois do trabalho, nos almoços de domingo, nas discussões entre amigos e família sobre política e demais ramos e no que a mídia ventila como sendo de importância para o saber coletivo.

Através desses mecanismos e de mais alguns adendos, a sociedade se une, se divide e determina o rumo nos cargos eletivos da Administração Pública do país. E nesse momento nós estamos nos perguntando: quem nos representa?
O Brasil apostou em um político de carreira como chefe de Estado e Governo. Porém, esse não correspondeu aos anseios da maioria depois de ocupar a cadeira presidencial, e agora o país se depara com uma questão que é cruel para o brasileiro: quem nos salvará?

Infelizmente, a política virou um jogo de estrelas, e o que brilhar mais, leva, mesmo que seja um completo despreparado para o serviço. O brasileiro, nas suas conversas e debates, nas impressões sobre o que a mídia reverbera, elege seu mártir, seu salvador, e assim se isenta de qualquer responsabilidade que possa ter na vida pública, como se não fizesse parte da sociedade.

A polarização extrema tomou conta, o ideal de pluralismo político preconizado pela Constituição Federal parece ter se repartido em dois lados que não fazem muito além de apontar os defeitos em seus opositores, sem olhar para si próprios. Nisso, a sociedade agoniza. Figuras que mais prezam pela política que pelo interesse público alimentam a narrativa do “quem vai ganhar” em eleições futuras. A ideia republicana de governo escorre pelo ralo sem que muitos façam o barulho necessário para fechar essa ferida.

Em 16 de abril deste ano, o Ministro da Saúde Henrique Mandetta deixava seu cargo, após o já conhecido desentendimento com o atual Presidente da República. No dia seguinte, devido ao trabalho que fez junto ao citado Ministério, a tag #Mandetta2022 já era vista em publicações em redes sociais. O mesmo ocorreu quando o ex-ministro da justiça Sérgio Moro deixou o Governo. É escancarada a falta de uma representação digna dos valores democráticos do brasileiro. Não há essa figura, há uma sociedade perdida, buscando por um caminho, por alguém que represente o mínimo que seja necessário para se governar e não mais fazer o país prosperar, mas para fazer com que não entremos em queda livre num abismo sem fim.

Há carência de líderes, de representantes que não sejam narcisistas, preocupados com suas carreiras e não com seu país, preocupados em livrar amigos, familiares, de esquemas já conhecidos de captação de verbas públicas, etc. Aquele que demonstre uma honestidade mínima, carisma e identificação com a sociedade e seus problemas e também valores que a maioria considera importantes, ganha o nome entre a # e o 2022. Até lá, veremos essa busca de uma sociedade que não sabe mais o que pensar em um cenário político que agora se reduz a dois lados e não mostra uma alternativa pujante, a ponto de fazer com que digitemos seus números nas urnas.

E o que fica exposto, ao final, é o tamanho da falha em nosso sistema educacional, retratado em escolhas ruins e numa sociedade que se define pelo extremo, e agora padece de alguém minimamente competente para que governe o Brasil que outrora fomos, e hoje sentimos falta, mesmo que à época reclamássemos. Mas isso já é assunto para outro post...

quinta-feira, 28 de maio de 2020

A era das opiniões


O que temos vivenciado nos últimos anos parece ser uma espécie de exclusão (ou desconsideração) de qualquer conhecimento técnico que possa existir, independentemente da área. Não importa mais se alguém é especialista, estudou, dedicou uma vida a alguma causa, estudo, etc. O que parece ter um valor superior a tudo isso é um certo direito à "liberdade de expressão".

Entretanto, não se pode confundir liberdade de expressão com usurpação de conhecimento, de lugar de fala ou termos afins. Impôs-se uma ideia radical que tudo pode ser dito, sem responsabilidade, sem sequer haver algum comprometimento com a realidade. Porém, lembremos: opiniões mudam, os fatos, não.

Esse pressuposto parece básico, entretanto vivemos na época que o óbvio se perdeu, então precisa ser dito. Sob o manto da liberdade de expressão, muitos se aproveitam para mentir, acusar falsamente, caluniar e sim, opinar em assuntos técnicos mesmo sem conhecimento para tanto.

É importante separar liberdade de expressão de conhecimento. Sim, pasme, é importante, em pleno 2020, mostrar tal diferença. Basta lembrarmos que, ainda hoje, pessoas contestam o formato da Terra.

Não há proibição em se expressar. O artigo 5º, inciso IX e o artigo 220 da Constituição garantem a liberdade de expressão, bem como outros postulados também garantem. Mas a regra é clara: não se proíbe aquilo que se quer expressar, contudo quem o faz, arca com a responsabilidade pelo que expressou. Acho estarrecedor ser necessário explicar isso ainda hoje.

O que surgiu nesses últimos tempos foi uma ideia de criminalização da responsabilidade pelo que se diz. O que parece que se quer impor é a liberdade irrestrita. Tal discurso soa perigoso, pois o próprio conceito de liberdade de expressão é subjetivo, cabe a cada um. O que se viu com a recente operação da Polícia Federal contra uma rede de disseminadores de fake news, foi justamente a busca da responsabilização daqueles que usam do brocardo da liberdade de expressão para mentir, difamar, caluniar e passar em muito o limite do citado princípio. Mentir sobre algo e disseminar isso para convencer terceiros de que seja verdade, não é, e nem pode ser considerado liberdade de expressão. A fuga da responsabilidade pelo que se diz, a busca pela impunidade por mentiras que invetam, parece ter se tornado regra para determinados grupos da sociedade.

Para tais pessoas, aparenta que vale a máxima: "se não tenho algo contra você, eu invento".

Estamos aceitando, passivamente, que a verdade possa ser relativizada, que os fatos não são fatos, mas mera questão de opinião. Reduz-se acontecimentos, estudos, dados a pontos de vista. E não, não são.
O maior ataque desses grupos são as ciências humanas. Sim, eles realmente pensam que se trata de uma questão de opinião. Não importa o tempo de estudo, formação, especialização, para eles, a opinião é que vale, mesmo que não tenham conhecimento técnico. E tristemente vejo que não são apenas as ciências humanas que estão sendo vítimas dessa deturpada "liberdade de expressão".

Basta lembrarmos que nosso Presidente aconselha o uso de um medicamento contra o coronavírus, sem ter qualquer formação médica, passando por cima da palavra de dois médicos, e sim, mantendo no pasta da Saúde alguém também sem uma formação médica, tudo para emplacar o remédio (político) que acredita ser uma espécie de cura. E qual base de conhecimento para tal? Nenhuma.

O que falta hoje é o reconhecimento do limite para se opinar, pois se levarmos essa lógica ao extremo, poderíamos muito bem chamar um carpinteiro quando tivéssemos problemas de saúde, um médico quando quisermos processar alguém ou um sociólogo quando o motor do carro parar de funcionar. Mas a realidade é imbatível, ela se impõe, mostra o contrário, mesmo que a distorção da realidade seja aquilo que se vocifera. Ou seja, no fundo, é um ideal hipócrita.

Não há espaço para relativizações de conhecimentos consolidados, mas sim para debates em torno deles. A base para opinar deve vir, necessariamente, carregada com conhecimento, senão perde qualquer valor que se possa atribuir. A liberdade de opinião, bem como qualquer outro direito, tem limites. A exploração deste dogma para inventar, caluniar e cometer delitos, a fim de convencer outros da "verdade" que se deseja, deve sim ser responsabilizada. Não vivemos em um Estado anarquista.

Hoje faz-se mais que necessária a valorização profissional e das ciências, em todos os campos. Faz-se necessária a responsabilização daqueles que usurpam o princípio constitucional da liberdade de expressão para agredir, inventar, caluniar e ocultar a realidade com interesses escusos. Que entoam ideais autoritários, tentando colocar a liberdade de expressão como justificativa. Não, não é.
Faltou-nos bom senso para eleger mais um governo, para perceber que estávamos dando voz aos burros.

A liberdade, assim como qualquer outro direito, não é irrestrita. A responsabilização também é constitucional. Falta às instituições se tornarem, novamente, instituições, para que se faça valer nosso status de Estado.


terça-feira, 26 de maio de 2020

Operações Políticas

Eu faço escolhas dos meus candidatos baseado, basicamente, na lisura deles, visões sobre vários aspectos da sociedade, propostas, dentre outros critérios. O atual governo do RJ não foi minha escolha, nem mesmo seu opositor.

Uma pandemia é prato cheio para aqueles que estão no Poder Público e desejam ganhar uns milhões a mais. Superfaturamento de equipamentos, obras e todas as manobras corriqueiras de políticos aqui no Brasil ganham força com uma situação dessas. Um roubo covarde, como todo roubo.

Mas sempre temos os “mas”. Para mim, é latente a perseguição que o Presidente da República faz no governo carioca pelo fato do Ministério Público estadual investigar e mostrar fortes indícios de crime de um de seus filhos. A ânsia do Presidente em trocar o comando da Polícia Federal SOMENTE no RJ, deixa clara a vontade dele de tentar ter as rédeas de quem pode ser investigado no Estado, excluindo, obviamente, seus familiares.

Curiosamente, após as trocas na Polícia Federal, a mesma pediu arquivamento do inquérito contra Flávio Bolsonaro, sem nem mesmo quebrar os sigilos do mesmo para correta apuração, porém o Ministério Público discordou e a investigação seguiu, o que incomodou o pai do senador.

É importante nos atentarmos para tudo que está acontecendo e não deixar certas cortinas de fumaça ofuscarem nosso olhos. É indiscutível que deve haver investigação sobre esquemas de corrupção por conta da pandemia, do governo de qualquer estado, e condenar quem tiver de ser condenado. Por outro lado, devemos atentar para operações da Polícia Federal que nascem da noite para o dia, com buscas e apreensões contra governos estaduais (principalmente quando se tratar do RJ), e com conhecimento prévio da deputada Carla Zambelli, por exemplo, da base governista. Curiosamente tudo aquilo que o anterior Ministro da Justiça se opunha a fazer. Muitas “coincidências”, não?

Minha aposta aqui é: as próximas vítimas de uma velada perseguição do Presidente a governadores que ele não tem apreço são os governos de São Paulo, Ceará, Maranhão, etc.

Fiquemos atentos, temos alguém que usurpa instituições para emplacar suas ideologias e proteger sua casta, que se utiliza da democracia e de prerrogativas que tem para calar quem se opõe a ele e seus ideais pessoais que projeta na sociedade. Ditaduras também já foram construídas através da democracia. Governantes que protegem “os seus”, temos vastos exemplos. Nada disso é surpresa, o que é necessário agora é prezarmos pelo diferente de tudo isso.

Agora estão sendo construídas narrativas da próxima eleição presidencial. E podem apostar, operações como essa e outras que virão, estarão no discurso político para reeleição. O principal pilar anticorrupção (Sérgio Moro) já pulou do barco, é preciso que o Governo se mostre combativo nesse quesito. Portanto, coisas assim podem começar a aparecer, mas nunca contra o Presidente ou os seus. O que me parece é que agora, tenta-se manchar a imagem de possíveis candidatos para que se garanta uma reeleição do governo atual, por pior que ele seja.


A velha política costuma adquirir novas formas.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Jair parou em 86

Esse Jair mesmo, esse que governa o país. Talvez o título soe, para alguns, meio anacrônico. Talvez você tenha pensado que o correto seria 1964. Porém, não.

O Presidente que temos hoje não é aquele deputado revoltado, que brada discursos de ódio, etc. O que temos é aquele militar, capitão, preso quando escreveu em uma seção da revista Veja, reclamando de baixos salários. Aquele militar que ajudou a organizar a operação Beco Sem Saída, que consistia em explodir bombas em banheiros de um quartel, o que culminou em sua condenação pelo Conselho de Justiça Militar.

Sim, Jair ainda é esse oficial revoltado, que nas palavras de seus superiores á época, tinha uma "excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente".

Jair não progrediu, tentou buscar na política uma saída para corrigir aquilo que julgava como injustiça contra si. Jair crê, ainda, que comunistas programavam tomar o poder no Brasil em meados dos anos 60. Ele ainda está, na cabeça dele, combatendo esses tais comunistas.

Jair vê como perseguição todo o aparato legal o qual seus filhos e ele tem suspeitas de infringir. Vê como perseguição quem fiscaliza esquemas de rachadinha, repasse de verbas de comissionados e todos esses esquemas já conhecidos de deputados do chamado “baixo clero”. Todo e qualquer movimento a fim de corrigir as infrações de Jair à lei, ele chama de perseguição, de comunistas querendo pegá-lo, tomar o poder, etc.

E isso é o pior de tudo. Caso tudo isso fosse jogo político, não seria tão ruim. Veríamos alguém se adequando e trocando o disco certas vezes, para permanecer no jogo, como o Lula que diz frases desastrosas, mas “se desculpa”, pois sabe que isto o mantém em voga. Jair, não. Jair crê, convictamente, em tudo aquilo que elencou como verdade. Em tudo aquilo que elege como verdade, mesmo que não seja.

Estamos à deriva, nas mãos de um capitão conspiracionista, que precisa constantemente de um inimigo para combater, pois perdeu a batalha contra o Exército em 1988. Foi obrigado a engolir a seco o fato de que estava atentando contra a lei na busca por ser uma autoridade, pelo poder puro e simples, conforme descrito pelo coronel Carlos Pellegrino de que ele "tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos". A partir daí, Jair permaneceu a mesma pessoa que é hoje.

Esse é nosso maior perigo. Alguém que está disposto a tudo, inclusive a desrespeitar a Constituição, como o faz corriqueiramente, para sobrepor aquilo que acredita, pois acredita com todo afinco, para impor aquilo que crê como sendo verdade. Aquilo que na prática, não existiu na época, menos ainda existe hoje.