terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A linha tênue entre o fatalismo de ocasião e o negacionsimo


Em meio a discursos aparentemente antagônicos, é possível enxergarmos convergências de finalidade quando o assunto é burlar medidas de distanciamento e prevenção ao coronavírus. Meio esquisito começar um texto nestes termos, mas você vai entender.

Existe uma linha divisória imaginária entre negacionistas e fatalistas de ocasião. Uma linha tênue, como você pode já pode imaginar. Mas antes, vamos a alguns esclarecimentos: fatalistas de ocasião são aqueles que aderem a movimentos a favor de vítimas de determinado acontecimento ou de causas humanitárias (sejam acontecimentos de violências, acidentes ou doenças), mas que têm comportamentos contrários àquilo que pregam. Exemplos atuais para clarear: o jogador Neymar (que já gravou vídeo aplaudindo profissionais de saúde) e agora estaria organizando uma suposta festa de réveillon para 300 pessoas, ou o influenciador Felipe Neto, que tanto pregou o distanciamento social e as medidas de prevenção à covid-19, porém foi filmado em um jogo de futebol com amigos, além de outras "celebridades" que tiveram comportamentos semelhantes. Ou seja, há uma aparente aderência à dor alheia, a orientações de autoridades sanitárias, reconhecimento de profissionais da área de saúde, etc, porém também há, estranhamente, comportamentos na vida prática que são contrários a tudo isso que é reverberado. Comportamentos que vão contra tais orientações, recomendações, medidas de segurança, o que não faria sentido vindo de quem prega exatamente que isto não seja feito. Sim, você pensou em "faça o que eu diga, não faça o que eu faço".

Então seria possível traçar um paralelo entre o negacionismo científico e o fatalismo de ocasião? Tentaremos (a grosso modo).

O ponto de convergência entre ambos seria a finalidade. O fatalista de ocasião não nega o conhecimento científico, nem mesmo o refuta, pelo contrário, o divulga, endossa, dá o seu devido crédito. O negacionista, contrariamente, elenca teorias conspiratórias para colocar em xeque aquilo que tem comprovação fática, científica. Ele se apoia em tais teorias para descumprir recomendações sanitárias, administração de determinados fármacos ou mesmo tomar imunizantes para determinada doença, para contestar a ciência e agir por suas próprias medidas, geralmente baseadas em achismos. Ou seja, o negacionista assume que não reconhece o conhecimento científico como conhecimento de fato (meio macabro dizer isso em pleno 2020, mas está acontecendo). Já o fatalista de ocasião tem o comportamento oposto: endossa a ciência, prega seus conhecimentos, porém por vezes (sem generalizar), burla tais regras que tanto brada a todos e faz o contrário daquilo que seria sua convicção, em tese.

Ou seja, na prática, temos dois comportamentos idênticos que se dão por meios distintos. Um renega o conhecimento e, portanto, se comporta de forma contrária a toda recomendação científica de prevenção a um vírus, por exemplo. O outro refuta o negacionista e estimula os comportamentos recomendados pela ciência, porém, quando é conveniente, trai aquilo que toma por princípio em certa ocasião, para benefício próprio.
Nenhum dos dois é exemplo, e tais comportamentos maculam ainda mais as tentativas da ciência de salvar vidas, pois no final é isso que se busca.

O fatalista de ocasião prejudica ainda mais quem o toma como referência, quando se comporta de maneira contrária àquilo que tanto pede para que outros façam, "criminalizando" tanto quem faz o oposto daquilo que pede o conhecimento científico e assim, massificando ainda mais uma descrença sociopolítica em seus seguidores, admiradores. Afinal, "o exemplo deve vir de cima". Pouco adianta criticar figuras políticas e ter um comportamento semelhante a elas. Oposição se faz também, e principalmente, quando não há ninguém te olhando. Se for só para ser discurso, não é oposição, é autopromoção.

Sabemos que, infelizmente, muitos se aproveitam de eventos como essa pandemia para se projetar, seja culturalmente, politicamente, etc. Seja com um discurso negacionista, contra a ciência (que seria um discurso contra o "estabilishment" e um suposto controle que ele quer exercer sobre todos para implantar algo que nem mesmo os negacionistas sabem explicar direito o que é) ou um discurso pró-ciência, se colocando como norte para aqueles que desejam se informar e se opor aos negacionistas, derrubar as falácias em cima da ciência e orientar a população ao recomendado pelos especialistas.

Ou seja, um evento devastador como esse que estamos vivendo, também é palco para quem deseja entrar no picadeiro político-social e assim se projetar de alguma forma. O oportunismo que ignora vidas perdidas e se dá no discurso bonito, em lives nas redes sociais com pompa intelectualizada e análises muitas vezes rasas (mas que agradam os ouvidos de muitos), se mostra na prática e assim reflete não só a nossa sociedade bem como reforça o estereótipo de que o brasileiro é "desse jeito e não irá mudar", que não adianta votar, impor restrições, fazer leis, desenvolver estudos, ter regras de maneira geral. E talvez esteja correto, até certo ponto. Talvez haja no brasileiro uma certa letargia fática, onde o conformismo com certas questões tomou conta e normalizamos o anormal, o absurdo. Interessa mais tomar conta dos comportamentos cotidianos daqueles que estão em voga para fazer um julgamento moral do que se debruçar e compreender questões um pouco mais complexas.

É péssimo ver fatalistas de ocasião fazendo exatamente o contrário do que pregaram para seu público. Pior ainda é ver negacionistas pegando tais comportamento e apontando-os como exemplos de hipocrisia, reforçando seu próprio discurso e enfraquecendo ainda mais o conhecimento científico. Transformando tais exceções (porque sim, esses comportamentos são exceções) em regra, como se aqueles que aderissem às recomendações científicas, na realidade, fossem iguais aos negacionistas.


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