Falemos de uma questão tortuosa: aborto. Aborto é crime, tipificado nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. O art. 124 trata do aborto que a própria gestante provoca em si ou que esta consente que outrem lhe provoque o aborto. O art. 125 trata do aborto provocado por terceiro, onde a gestante não consente com o aborto, mas, este é provocado por outra pessoa. Comum exemplo é aquele que oferta uma espécie de chá abortivo a gestante e esta aceita e ingere tal chá sem saber que isto provocará o aborto. Já o artigo 126 trata do aborto provocado por outrem com o consentimento da gestante. Porém, não venho aqui dissertar sobre o aborto em geral, mas, sim, especificamente sobre o artigo 128, inciso II do Código Penal.
Vejamos sua redação: "Não se pune o aborto praticado por médico:
I - (...)
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal."
Vê-se que a lei autoriza determinado tipo de aborto. A princípio pode-se achar tal situação normal, se avaliarmos como deveria ocorrer segundo conceitos morais e da vida prática. Mas, aí se encontra grande fonte de divergência e discussão sobre o assunto. Basta refletir: aborto é crime. É tipificado como tal no Código Penal. E esse mesmo código descriminaliza este crime criado por ele mesmo se for antecedido de outro crime (estupro, no caso). O problema todo é: onde se pode enxergar que tal conduta não é crime? Digo onde, dentro dos elementos do crime.
O crime é constituído por três elementos. São eles: tipicidade, ilicitude e culpabilidade. O crime é um ato típico, ilícito e culpável.
Bem, então já vislumbramos que o fato é típico, ou seja, é um crime que existe. A dúvida esta aí: é ilícito ou culpável?
A início, podemos verificar o art. 23 do Código que trata das causas de exclusão da ilicitude. São elas: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito.
Não pode se encaixar em legítima defesa visto a gestante não estar sofrendo injusta agressão por parte do feto. Também não creio que possa estender tal conceito para o ato de estupro praticado contra a gestante. Ou seja, ela não sofreu agressão por parte do feto, mas, pelo agente que a estuprou, então, numa extensão deste conceito, versaria que a legítima defesa poderia ser alegada pelo fato de ter sido um estupro, portanto, perfeitamente adequada ao caso do aborto subsequente. Errado. Tecnicamente esta errado, e, tal hipótese é impensável e incabível, visto que, de fato, não há agressão por parte do feto.
Estrito cumprimento de dever legal não pode ser alegado. Basta observar que o aborto é um tipo penal, portanto, se praticado, vai contra o ordenamento jurídico, ou seja, não há cumprimento de dever legal, mas sim, uma conduta que fere o ordenamento jurídico.
Exercício regular de direito não se encaixa no caso e quase se confunde com a hipótese acima. Deve-se atentar para o fato de que o ordenamento jurídico busca a preservação da vida e não o contrário.
Sobraria o estado de necessidade, alegado por parte da doutrina. Discordo de tal posição.
Analisemos: é necessário que exista confronto de dois bens jurídicos protegidos pelo ordenamento. De acordo com a teoria unitária, que é adotada pelo nosso código, todo estado de necessidade é justificante, ou seja, afasta a ilicitude. A teoria diferenciadora faz divisão entre o estado de necessidade justificante (excludente direto da ilicitude) e estado de necessidade exculpante (exclui a culpabilidade).
A diferença é: se o valor do bem jurídico que quer se preservar for maior do que aquele contra qual o agente dirige sua conduta, então seria o justificante. E o contrário, será o exculpante. A priori pode-se pensar que esta teoria se encaixa perfeitamente no caso, mas, isto não ocorre. Não se pode falar em justificante, pois, se fossemos fazer juízo de valor sobre tal caso, veremos que o valor vida é superior ao valor honra (da gestante). E para falar-se em exculpante, entramos na seara da culpabilidade, onde se pode verificar se o valor honra é maior que o valor vida. Esta é a grande questão: deve-se abortar uma vida de uma gravidez proveniente de estupro?
Entendo, portanto, tratar-se de inexigibilidade de conduta diversa, excluindo a culpabilidade.
O fato é típico, é ilícito, porém, não é culpável. No momento do estupro, tal fato ocorreu contra a vontade da gestante. Portanto, não se pode exigir que ela proceda de forma diversa caso queira abortar. O fator vítima é importante ser frisado, pois, a partir deste momento, conclui-se que tal condição exige que a gestante tenha meios para restabelecer-se da agressão sofrida. Não pode ser ela obrigada a dar vida a uma vida que nem mesmo poderia existir devido ao modo violento como foi feita. Feriria o princípio da dignidade da pessoa humana.
Já existe certa discussão de que esta seria uma hipótese de uma valoração maior do princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao direito a vida, inerente ao nosso ordenamento. Há controvérsias, e, minha posição é de que, neste caso específico, haja esta possibilidade, porém, não se deve enxergar isto como uma diminuição no valor do princípio vida. Existe o mesmo valor, mas, tratando-se de princípios constitucionais em conflito, sabemos que tal conflito deve ser superado ou mediante a redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios, como aduz Jorge Miranda.
Questão para pensarmos e refletirmos, mas, creio ser impossível se chegar a um consenso.